Sarjeta do Terror #14 – Terror no mundo real: O Comics Code Authority, parte 1

Nem sempre o terror fica só na ficção. Conheça a história do código de ética que condenou as hqs do gênero, sepultou a EC Comics e redefiniu os quadrinhos norteamericanos pra sempre.

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Responsável por sepultar a EC Comics, a mais popular editora de Hqs de terror, suspense e policial dos anos 50, O famigerado Comics Code Authority fez mais do que atacar as revistas de terror: alterou também a forma como se fazia quadrinhos e pode ser considerada responsável por muito (embora não tudo) da “infantilização” das Hqs de super-herói entre os anos 50 e 60. Mas o código não surgiu da noite para o dia, e não teve apenas Fredric Wertham como único protagonista da história: O Comics Code Authority é resultado de um ambiente cultural que questionava os quadrinhos como meio de entretenimento e seu impacto no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Origens

A controvérsia a respeito das histórias em quadrinhos já era tema de debates nos anos 30. O primeiro grupo que tomou os comics como alvo foram professores, que viam a mídia como uma má influência para os alunos e que prejudicariam suas habilidades e gostos literários. Naquela época, os quadrinhos ainda eram majoritariamente vistos como uma “literatura barata” sem expressão artística e, à exemplo do que muitas pessoas pensam ainda hoje, eram vistos como material para quem “tinha preguiça de ler”.

Política e culturalmente falando, ainda havia outra questão fundamental a respeito das histórias em quadrinhos. Diferentes dos livros infantis, os comics eram escolhidos diretamente pelas crianças. Ou seja, pela primeira vez, elas tinham o poder de escolha sobre o material que consumiam. Podemos somar a isso grupos religiosos, que viam problemas em mulheres seminuas nas selvas e a glorificação de vilões em Hqs criminais. Já nessa época, o escritório nacional da Igreja Católica incluíra os comics entre o tipo de conteúdo que precisava ser avaliado antes de ser recomendado à congregação.

Mas a situação começou a se acentuar realmente no pós-Guerra. À época, a delinqüência juvenil se tornou um tópico de discussão na cultura americana, especialmente entre especialistas da área de saúde mental. Com o terreno já preparado desde a década anterior, estes profissionais facilmente foram atraídos para os comics e para questionar seu consumo pelos adolescentes. Entre estes especialistas estava o Dr. Fredric Wertham, psiquiatra novaiorquino que começou uma campanha para banir a venda de quadrinhos para crianças, argumentando que elas imitavam as ações dos personagens e que, por isso, os comics as levavam à violência. Seus estudos levaram, em 1954, ao livro que ficaria conhecido como “bíblia” do Comics Code.

A sedução do Inocente

No livro mais famoso de Wertham, A Sedução do Inocente, ele explora sua hipótese de que os quadrinhos levavam à delinquência juvenil. A partir de uma (pequena) amostra de pacientes com graves problemas de delinqüência, o psiquiatra deduziu que os quadrinhos eram os responsáveis pelo comportamento desses jovens, uma vez que muitas de suas ações guardavam paralelos e similaridades com situações representadas nas Hqs. As ações iam desde a homossexualidade (que na época era considerado um distúrbio comportamental), onde Wertham comparou jovens gays que liam Batman, até crimes diversos, como roubo e assassinato.

O livro explora diversos supostos problemas nas Hqs criminais (que era como ele chamava todas as Hqs que tinham assassinatos mais explícitos, sejam Hqs policiais ou de terror), mas também nas Hqs de super-heróis. Por exemplo, ele alegava que Superman era não-americano e fascista, que Batman e Robin promoviam a homossexualidade (ou homossexualismo, como era chamado à época) e que as histórias da Mulher Maravilha possuíam um subtexto de dominação (o que neste caso realmente era verdade), além de o fato dela ser superforte ser uma clara (para ele) prova de que a heroína era lésbica. Além disso, Wertham também enxergava coisas como nudez subliminar e objetos fálicos em desenhos aparentemente inocentes.

Atualmente, estudos mais detalhados e novas evidências demonstram que Wertham manipulou e distorceu diversas das informações que apresenta sobre seus resultados. Diversos problemas metodológicos (como tamanho da amostra, usar evidências anedóticas e tratá-las como evidência empírica, entre outros) e um maior uso da retórica do que de evidências reais colocam em cheque os estudos do autor à época.

Oportunismo político

Antes mesmo de A Sedução do Inocente, a ideia de que os quadrinhos levavam à delinquência juvenil já era aventada nos círculos acadêmicos, políticos e populares (o próprio Fredric Wertham havia escrito um artigo sobre o assunto em 1947). Tendo se tornado quase um problema de segurança pública (ao menos aos olhos de uma América pós-guerra extremamente paranoica), não demorou muito para que o governo entrasse na jogada. Em 1953 foi criado o United States Senate Subcommittee on Juvenile Delinquency, que visava debater exaustivamente o assunto.

O Subcomitê foi uma unidade do Comitê Judiciário do Senado americano criado por uma moção do Senador Robert Hendrickson e os primeiros membros do subcomitê foram os senadores Estes Kefauver, Thomas C. Hennings Jr. e William Langer. Hendrickson começou presidindo o comitê, mas foi logo substituído por Kefauver.

Estes Kefauver não era um desconhecido da opinião pública. Entre 1950 e 1951, ele presidiu o subcomitê especial do Senado que investigava o crime organizado. Como entre as testemunhas ouvidas estavam mafiosos como Frank Costello, o comitê ganhou grande popularidade, tendo sido inclusive transmitido pela TV, com grande audiência. Kefauver se tornou praticamente um “político popstar” por sua imagem estar ligada ao combate forte ao crime organizado. Não era de surpreender, portanto, que Kefauver acabaria sendo uma escolha natural para presidir as audiências sobre as Hqs, que aconteceriam em 1954.

As audiências sobre histórias em quadrinhos

Como normalmente acontece quando uma sociedade passa por um problema cultural considerado grave, há sempre a tendência a procurar um elemento que sirva como o “vilão” da história, para que a situação pareça ser possível de se resolver, e que as autoridades (seja a polícia ou o governo) não pareçam completos incompetentes. Nos EUA mesmo, é possível ver essa tendência ainda hoje, com a criminalização informal, mas reforçada culturalmente e pela mídia, do Islamismo, para relacioná-lo ao terrorismo (sendo que os americanos falham em perceber que todo ano algum americano nascido e criado em sua cultura, surge em algum estabelecimento, de escola a cinema, atirando em um bando de pessoas – mas o problema, é claro, são os muçulmanos).

No caso da “crise” americana da delinquência juvenil, o vilão da vez foram as histórias em quadrinhos. Os comics eram um alvo fácil, uma vez que já havia um tempo que diversos setores da sociedade buscavam demonizar esta mídia.

Foi então que, em 1954, o subcomitê americano sobre delinquência juvenil decidiu focar seus esforços nos comics e realizou uma série de audiências para falar sobre o tema. O principal alvo foram as “HQs criminais”, que era como generalizavam os comics que giravam em torno de crimes diversos, sejam policiais, de suspense ou de terror.

Por conta disso, a EC Comics, de William Gaines (foco de uma série de matérias anteriores, leia aqui, aqui, aqui e aqui) foi a mais afetada; afinal, a editora fez fama com estes gêneros de quadrinhos. Gaines foi massacrado nas audiências e, graças ao pouco apoio que recebeu da comunidade editorial e da nada favorável opinião da imprensa a respeito do assunto, não houve outra opção a não ser a indústria de quadrinhos se submeter àquilo que depois ficaria conhecido como Comics Code Authority.

Curiosidades:

– O argumento de que as crianças eram estúpidas demais para entender certos conceitos (como ficção) e os imitariam, que foi um dos argumentos contra a leitura de quadrinhos, não era novo. Nos anos 20, um professor do Tenessee foi para os tribunais por ensinar a seleção natural na escola, ao invés do criacionismo bíblico. O julgamento ficou famoso por ter tido como consequência uma revisão de certos modelos educacionais nos EUA, com uma maior separação entre Igreja e Estado. À época, a visão (incorreta) de que o evolucionismo demonstrava que o homem descendia do “macaco”, levava ao argumento de que, se fosse ensinado às crianças que o homem veio do macaco, logo elas começariam a se comportar como animais. O julgamento citado, conhecido como “o julgamento de scopes”, foi retratado no filme “O Vento será Tua Herança”.
– Marv Wolfman se envolveu num incidente curioso que envolve o código. Tudo isso por conta de uma história que escreveu para House of Secrets #83 (1970), onde o narrador fala sobre uma história contada por ele por um “a wandering wolfman”. Como “Wolfman estava em caixa alta, parecia que o termo se referia a um Lobisomem (wolfman, em inglês). A CCA rejeitou a história, e Gerry Conway veio ao resgate explicar que o sobrenome do autor da história era Wolfman, e perguntou se ainda seria considerado violação em caso do nome do autor fosse explicitado na história. O CCA concordou, e a história teve o crédito na primeira página da história. Isso levou a DC a começar finalmente a creditar criadores nas suas antologias de subrenatural/mistério.
– Embora a comissão do Comics Code não tivesse nenhum controle oficial sobre editoras, a maioria dos distribuidores se recusava a entregar Hqs que não tivessem o selo. Apesar disso, pelo menos duas editoras de quadrinhos (Dell e Golden Key) não apresentavam o selo em suas capas, e continuavam amplamente disponíveis para venda.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Edições anteriores:

13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas

12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura

11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz

10 – EC Comics, parte 3: o fim

9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga

8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)

7 – EC Comics, parte 2: o auge

6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional

5 – EC Comics, parte 1: o início

4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo

3 – A Era de Ouro dos comics de terror

2 – Beladona

1 – As histórias em quadrinhos de terror: os primórdios

Autor: Amanda Paiva

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