Sarjeta do Terror #16 – Terror no mundo real: O Comics Code Authority, final

Na última parte da matéria sobre o Comics Code Authority, entenda como o código obrigou as editoras a se adaptarem, e como uma nova configuração de distribuição abriu caminho para o mercado americano como conhecemos hoje.

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Surge o Comics Code Authority

Já em 1948, a indústria de quadrinhos havia se movimentado para dar algum tipo de resposta prática frente às preocupações da população com relação aos quadrinhos e seu impacto nas crianças. Naquela época foi criado a Association of Comics Magazine Publishers (ACMP), formada por Phil Keenan, da Hillman Periodicals, Leverett Gleason, da Lev Gleason Publications, William Gaines, da EC Comics, Harold Moore (publisher da Famous Funnies) e Rae Herman, da Orbit Publications, entre outros. A tentativa de se autorregular durou até 1954, quando, após o fracasso (para o lado dos quadrinhos) das audiências sobre comics do subcomitê sobre delinquência juvenil, a ACMP foi substituída pela CMAA (Comics Magazine Association of America), que passaria a ser chefiada pelo especialista em delinquência juvenil Charles F. Murphy.

A CMAA se tornou uma espécie de organização que deliberava sobre um novo “código de ética e padrões” para a indústria de quadrinhos americana, que passou a ser chamado de Comics Code Authority. Esse código era baseado num rascunho que a ACMP havia produzido anteriormente, e que por sua vez era ligeiramente baseado no Hollywood Production Code, de 1930 (mais detalhes em curiosidades). As Hqs precisariam ser enviadas ao CMAA para aprovação e as revistas aprovadas estampariam um selo, que era a garantia que haviam sido submetidas e aprovadas pelo código. Este bania representações explícitas de violência e gore em quadrinhos criminais e de terror, definia que os mocinhos tinham que sempre ganhar no final, proibia a glamourização e humanização dos vilões, insinuações sexuais, além de diversas outras proibições estranhas, como banir as palavras “horror”, “terror” e “weird” dos títulos das Hqs e riscar do mapa a aparição de mortos vivos, tortura, vampiros e vampirismo, entidades diversas, canibalismo e lobisomens. Estas últimas restrições pareciam mirar exclusivamente na EC Comics, que não teve outra opção a não ser cancelar seus títulos e tentar mudar o foco de suas publicações (o que acabou não sendo bem sucedido e a editora deixou de existir).

Diferente da EC Comics, a DC, que publicava em sua maior parte super-heróis, se ajustou mais facilmente ao código. Transformou a Mulher Maravilha numa personagem “mais comportada” e fez Dick Grayson, o Robin, ir para faculdade e se afastar do Batman. E, assim, com histórias muito mais pueris, a editora conseguiu seguir adiante sem perder seus personagens mais populares e sem a ameaça de encerrar as atividades de vez, com aconteceu com a editora de Bill Gaines.

O programa “Confidential File”, num episódio de 1955, usa os quadrinhos como tópico. O vídeo é um ótimo exemplo da mentalidade da época a respeito do tema. (em inglês)

Homem Aranha e a revisão nos anos 70

No começo dos anos 70, a Marvel Comics tentou pedir permissão para a CMAA a fim de publicar uma história do Homem Aranha que envolvia uso de drogas. O pedido foi negado, mas a ação não passou batida, pois acabou levando os membros da comissão a pensarem numa revisão do código. Foram feitos alguns rascunhos e, em 1971, os editores concordaram com uma nova versão, que não só permitia mostrar o uso de drogas e narcóticos nas histórias (desde que mostrados como um hábito vicioso), mas também passou a permitir monstros como vampiros, criaturas e lobisomens, desde que representadas na “clássica tradição de [personagens como] Frankenstein, Drácula e outros trabalhos de alto calibre literários escritos por Edgar Allan Poe, Saki, Conan Doyle e outros respeitáveis autores cujos trabalhos são lidos em escolas ao redor do mundo”.

A nova versão do código começava, aos poucos, a flexibilizar as regras, o que abriu caminho para novos tipos de histórias e permitiu o retorno das Hqs de terror, ainda que de forma limitada, às grandes editoras (falaremos disso em matérias futuras).

Contornando o código através do advento das Comic Shops

A essa altura do campeonato, apenas 4 editoras permaneciam ativas na CMAA entre os anos 70 e 80 – Archie, Marvel, Harvey e DC. Mas uma grande mudança na distribuição de quadrinhos tornou possível aos editores vender comics sem o selo de aprovação do código: a negociação direta com Comic shops.

Antigamente, as revistas em quadrinhos eram distribuídas de forma semelhante ao que acontece aqui, em bancas de jornais. Assim, os distribuidores entregavam quadrinhos junto com outras revistas, e serviam como um braço do Comics Code, pois concordavam em entregar apenas quadrinhos com o selo. Mas no mercado direto de distribuição, que criou distribuidores especializados, essa relação ficou mais estreita e, para fortalecer esse mercado, tanto vendedores quando distribuidores diretos passaram a também receber Hqs sem o selo do Comics Code, abrindo a porta para editoras contornarem o código e sua censura. Livre das restrições do Comics Code, novos editores começaram a experimentar com novos materiais – incluindo material para o público adulto – a fim de expandir sua audiência. Começavam a surgir as editoras independentes.

Uma nova revisão: 1989

Com o mercado efervescendo de publicações independentes que não davam a mínima para o Comics Code, a CMAA decidiu por uma nova revisão no código. Embora as grandes editoras não tivessem um consenso sobre o assunto (Algumas, como Marvel e Archie, eram favoráveis a manter o código antigo), uma grande pressão por parte da DC Comics, que argumentava que o código era um constrangimento para autores e artistas, levou a CMAA a rascunhar um documento chamado Principles of the Comics Code Authority, que continham declarações gerais sobre violência e linguagem, além de outras áreas de preocupação. Outro documento, exclusivo e restrito aos editores, listava regras específicas para cada área de conteúdo.

1989 também marca um ano importante para a diversidade nos quadrinhos: o banimento de referências à homossexualidade foi eliminado para permitir representações não estereotipadas de personagens LGBT.

O Comics Code definha

Desde a revisão do código nos anos 70 e a nova configuração logística do mercado de quadrinhos americano, o Comics Code foi perdendo cada vez mais sua relevância. Hqs como Lanterna Verde/Arqueiro verde, Homem Aranha, Batman, Monstro do Pântano, entre outros, começaram a trabalhar com temas mais complexos e explorar cada vez mais áreas de cinza, deixando as editoras mais corajosas para alçar novos vôos. Muitas dessas HQs, como Monstro do Pântano, tiveram edições que saíram sem o selo do Comics Code. Isso acarretou o surgimento de clássicos como A piada Mortal, Asilo Arkham, o Cavaleiro das Trevas, Watchmen, Sandman, Deadman e outras obras fechadas que buscavam um público adulto e mais sofisticado.

Em 2001, a Marvel parou de submeter suas Hqs ao código, criando seu próprio sistema de regras. E, em 2011, 10 anos depois da concorrente, a DC anunciou que não procuraria mais a CMAA para aprovar suas revistas. Atualmente, pouquíssimas revistas ainda são submetidas ao Comics Code, entre elas Hqs para crianças pequenas e um ou outro título de super-herói. Por fim, a Archie Comics foi a pá de cal para enterrar de vez a credibilidade do código, encerrando uma supremacia de quase 60 anos sobre os quadrinhos norteamericanos.

Hoje, cada editora de quadrinhos possui regulamentação própria para seus títulos, e a indústria atualmente consegue barrar críticas defasadas invocando a primeira emenda (Liberdade de Expressão), que é assistida pelo Comic Book Legal Defense Fund, que visa proteger estes direitos através de representação legal, consultoria, assistência e educação.

Curiosidades
– O Motion Picture Production Code, também conhecido como The Hays Code, foi uma série de linhas morais aplicadas aos filmes americanos lançados pelos grandes estúdios entre 1930 e 1968 e que tinha objetivo semelhante ao Comics Code. Com o tempo, o código se tornou datado e, a partir de 1968, foi substituído pelo sistema de avaliação MPAA (Motion Picture Association of America), que é quem aplica a classificação etária dos filmes nos EUA até hoje.

– Apesar da revisão em 1971 ter permitido a representação de criaturas e monstros, os zumbis ficaram de fora, uma vez que a referência do conselho era a literatura gótica vitoriana. Como zumbis não tinham essa bagagem literária, permaneceram como tabu pelo código por mais tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Edições anteriores:

15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto

14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1

13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas

12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura

11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz

10 – EC Comics, parte 3: o fim

9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga

8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)

7 – EC Comics, parte 2: o auge

6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional

5 – EC Comics, parte 1: o início

4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo

3 – A Era de Ouro dos comics de terror

2 – Beladona

1 – As histórias em quadrinhos de terror: os primórdios

Autor: Amanda Paiva

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