Sarjeta do Terror #42 – Vampirella

No primeiro Sarjeta do Terror de 2018, conheça a história e trajetória de uma das personagens mais clássicas dos quadrinhos de terror: Vampirella.

Os anos 60 foram bastante… movimentados. Os movimentos negros tomaram força com Malcolm X, Martin Luther King e o partido dos Panteras Negras; a chamada segunda onda feminista tomou os EUA com Betty Friedan e Gloria Steinem (entre outras) e a revolução sexual decidia que você era livre para fara ficar pelado com quem e para quem você quisesse, independente de etnia ou gênero. Todos esses movimentos possuem ecos (e lutas) até hoje, mas é a revolução sexual que permitiu a gênese do tópico de hoje.

Para quem não conhece essa parte da história ou nunca ouviu/leu esse termo, a revolução sexual, ou libertação sexual, foi um movimento social que desafiou a cultura ocidental tradicional ao contestar a forma como a sexualidade e os relacionamentos interpessoais eram impostos. Isso incluía aceitar coisas que, na época, eram consideradas erradas, como sexo fora do casamento e o casamento tradicional (heterossexuais e monogâmicos). Isso, é claro, se ligava aos outros movimentos, especialmente ao feminista, uma vez que a dinâmica das relações entre homens e mulheres na sociedade (americana) da época excluía o poder feminino de decisão sobre seu próprio corpo e suas próprias necessidades (e em muitos casos o faz até hoje).

Desnecessário dizer que a arte estava alinhada a essa mentalidade e ajudou (como sempre faz) a disseminar as novas e revolucionárias ideias de igualdade racial, de gênero e libertação sexual. E, dentro desse contexto, diversas personagens independentes e sexualmente livres surgiram nas mais diversas mídias narrativas, como Barbarella (1962) e o tema da postagem de hoje, Vampirella.

 

Histórico

Vampirella é uma alienígena vinda de Drakulon, um planeta de dois sóis onde sangue é a água do local (ou seja, rios e oceanos são feitos de sangue). Lá, o raça de Vampirella morre lentamente por conta da secagem dos rios e oceanos. Ao se ver tendo que lutar contra um astronauta terrestre que caiu no planeta, Vampirella descobre que nas veias dele corre o mesmo líquido que é a fonte de vida de sua raça. Ela acaba então viajando para nosso planeta, onde descobre que há seres muito semelhantes a ela, chamados vampiros, que possuem uma “má reputação” por aqui. Por conta disso, ela decide trilhar o “caminho do bem”, evitando matar indiscriminadamente.

Vampirella surgiu como parte da “tríade” de horror hosts da Warren Publishing, que incluía também o Titio Creepy e o Primo Eerie. Cada horror host tinha sua própria revista, onde contavam histórias assustadoras. Diferente de seus “irmãos”, no entanto, Vampirella tinha uma característica particular: além de ser a contadora de histórias de sua revista, era também protagonista de suas próprias histórias.

Criada por Forrest J Ackerman e Trina Robbins, Vampirella apareceu pela primeira vez em 1969, na antologia que levava seu nome, mas que também contava com histórias da heroína. As primeiras histórias carregavam as marcas da ficção científica camp-erótica que era popular nos anos 60 (do qual Barbarella também fazia parte, não só nos quadrinhos, mas com um filme em 68, que se tornaria um clássico cult).

Tom Sutton foi o primeiro desenhista de Vampirella, depois seguido por José Gonzalez (o mais conhecido), mas a personagem também contou com artistas como Gonzalo Mayo, Leopold Sanchez, Esteban Maroto, José Ortiz, Escolano, Rudy Nebres, Ramon Torrents, Pablo Marcos, Jim Janes, John Lakey, Val Lakey e Louis Small, Jr.

Com a chegada de Archie Goodwin ao título (como editor e roteirista) a partir do número 7, Vampirella começou a ter histórias mais regulares e sua mitologia começou a ser estabelecida. Além de ter que se integrar a uma nova sociedade (a nossa), Vampirella acabou se aliando a dois caçadores de vampiros, Adan Van Helsing (também seu interesse romântico) e seu pai, Conrad Van Helsing, um médium cego, além de um antigo mágico chamado Mordecai Pendragon, de quem foi assistente por um tempo.

A maior parte das histórias envolvia Vampirella ajudando os Van Helsing contra os seguidores de Caos, especialistas nas artes negras da magia, além de sua sede de sangue, que ela tinha que controlar, já que havia decidido ser “boa”. Um soro foi produzido mais tarde e garantiu que ela não tivesse mais essa sede de sangue, mas com o efeito colateral de, se ela não tomasse, se transformava numa ameaça a todos ao seu redor, incluindo conhecidos. A fase de Vampirella na Warren durou até 1983, com o número 112 da revista, quando James Warren decretou falência e a Warren Publishing foi extinta.

 

A reformulação pela Harris Publications

Apesar de ter surgido como parte do espírito da época dos anos 60, Vampirella se encaixou perfeitamente no espírito dos anos 90, quando o “grim ’n gritty” emergiu de obras seminais dos anos 80 como Watchmen e O Cavaleiro das Trevas. Neste contexto, as “bad girls”, mulheres poderosíssimas de corpos esculturais e uniformes nada práticos com pouquíssimo tecido dominaram os quadrinhos com o apelo necessário para o público masculino (o erotismo implícito) e, com sorte, para o feminino (com boas histórias e personagens bem desenvolvidas).

Com a falência da Warren, a Harris  adquiriu os direitos sobre a personagem no início dos anos 90 e não demorou para retomá-la, já que ela se encaixava perfeitamente no nicho do qual fizeram parte personagens populares como Elektra, Mulher-Gato, Lady Death, Glory e Witchblade, entre outras.

Um dos gêneros bastante populares entre essas “bad girls” era o sobrenatural, por isso a origem de Vampirella foi alterada a fim de ignorar os elementos de ficção científica e deixá-la mais próxima das criaturas no qual ela era inspirada – os vampiros.

Na nova origem (que retconizou o histórico da personagem, mas não eliminou suas histórias pregressas), Drakulon não era um outro planeta, e sim um dos círculos do inferno. Vampirella era, na verdade uma das filhas de Lillith, primeira mulher de Adão que foi condenada ao inferno. Lá, ela acasala com demônios para enfurecer a deus, dando a luz aos vampiros. Mas, ao perceber o mal que as criaturas faziam na Terra, Lilith se arrepende e decide dar a luz a dois filhos, esperando que uma delas a redima.

No entanto seus filhos, Madek and Magdalene, acabam seguindo o caminho do mal. Vampirella foi a última tentativa de Lilith de se redimir através das filhas. Só que Vampirella não era poderosa o suficiente para enfrentar seus irmãos e acabou sendo capturada, tendo suas memórias manipuladas. Foi assim que ela passou a achar que vinha de outro planeta.

A fase de Vampirella na Harris teve diversas revisões (algo que se tornaria uma constante no histórico da personagem, não só nessa editora). Numa delas, foi Litith quem faz lavagem cerebral na filha e não teve ela para se redimir, e sim para se apossar do Coração das Trevas, que só podia ser feito por uma boa pessoa. Mais adiante, outra revisão estabeleceu que na verdade Lilith enfraquecia pela presença de tantos vampiros na Terra e teve Vampirella para se livrar de todos eles e recuperar seus poderes. Vampirella “morre” algumas vezes durante seu período na Harris.

 

Dynamite Entertainment reformula a personagem de novo (e de novo…e de novo…e de novo…)

Em 2010, a Dynamite Entertainment assume a personagem e a reformula (mais de uma vez). O primeiro volume, escrito por Eric Trautmann, matou Adam Van Helsing, par romântico e aliado de Vampirella e a colocou trabalhando contra a sua vontade para Drácula. A editora trouxe de volta diversos elementos e personagens da época da Warren, como Pendragon e também tentou atualizar seu uniforme, dando à personagens calças e uma jaqueta. Não funcionou. Esse primeiro volume termina da forma mais “covarde” possível: assumindo que esta versão de Vampirella é de um universo alternativo – fazendo com que a história da Vampirella “original” permanecesse inalterada.

O segundo volume, mais recente, tenta fazer Vampirella voltar às suas raízes. Para isso, a editora recrutou Nancy Collins (que já havia escrito Monstro do Pântano no passado), que colocou a personagem como uma agente do Vaticano. Mal essa nova versão estreou e um novo reboot chegou nas mãos da autora Kate Leth, que dá um novo uniforme à personagem e a restabelece como uma alien recém chegada à terra que acaba atuando como “scream queen” (atriz conhecida por participar de filmes de terror).

E, se você achava que havia acabado, está enganado: pouco mais de um ano depois da nova versão, uma versão ainda mais nova ainda é lançada. Nessa relançamento, Vampirella acorda mil anos no futuro e descobre que absorveu as memórias e experiências das Vampirellas de outros universos paralelos. E essa é a versão mais atual da personagem (por enquanto).

 

No Brasil

A história de publicação da Vampirella no Brasil é semelhante ao de Dylan Dog, com seus altos e baixos (mais altos do que baixos) e nunca se manteve por muito tempo. A personagem foi publicada pela primeira vez pela editora Kultus, seguida logo depois pela Noblet, mas foram poucas edições e com numeração diferente, fora de ordem, sem uma grande preocupação com a cronologia da personagem.

Foi também publicada pela Metal pesado nos anos 90, em um álbum comemorando os 25 anos da personagem, e pela Abril, num crossover com a Mulher Gato. Em 2001, a Devir publicou o especial “Vampirella vive”. Atualmente, a Mythos começou a publicar Vampirella – Grandes Clássicos, que compila as primeiras histórias da Warren da parceria entre Archie Goodwin e José Gonzalez.

Vampirella é uma das personagens clássicas dos quadrinhos de horror americanos e certamente continuará aí por muito tempo. Infelizmente, para os fãs brasileiros, não há muito material nacional com a personagem e as histórias mais atuais, só comprando importado.

É uma pena também que Vampirella tenha se afastado tanto das raízes que a criaram em primeiro lugar, pois hoje, mais do que nunca, é o momento de celebrar personagens femininas fortes nas hqs de horror em histórias cujo erotismo é parte do que torna a personagem interessante.

 

Curiosidades:
– Vampirella ainda tem duas versões “alternativas”: Vampi, uma versão manga futurista onde a personagem busca uma cura para seu vampirismo; e Lil Vampi, introduzida em uma hq one-shot pela Dynamite que é a versão criança da personagem;
– Vampirella teve uma adaptação cinematográfica em um filme direto para vídeo em 1996, onde a personagem título foi interpretada pela atriz Talisa Soto e o vilão, Vlad, foi interpretado por ninguém menos que Roger Daltrey (vocalista da banda The Who).

 

 

Edições anteriores:

41 – O Homem Coisa

40 – Os quadrinhos de terror no Brasil: Criadores e Criaturas

39 – Os quadrinhos de terror no Brasil: parte 2

38 – Os quadrinhos de terror no Brasil: parte 1

37 – Apresentadores de terror (Horror Hosts)

36 – Dylan Dog

35 – Monstro do Pântano (parte 2 de 2)

34 – Monstro do Pântano (parte 1 de 2)

33 – Criadores de Terror: Bernie Wrightson

32 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Estranho

31 – Os 70 anos de Eerie #1

30 – Plantão Sarjeta do Terror – Sombras do Recife

29 – Criadores de Terror: Rodolfo Zalla

28 – Da TV para os quadrinhos: Além da imaginação

27 – Vigor Mortis Comics – Volume 1

26 – Super-heróis com um “pé” no terror: O Espectro

25 – Warren Publishing: Contornando o Comics Code

24 – Prontuário 666, os anos de Cárcere de Zé do Caixão

23 – Da TV para os quadrinhos: Arquivo X

22 – Criadores de Terror: Eugenio Colonnese

21 – Terror nas grandes editoras, parte final

20 – Terror nas grandes editoras, parte 2

19 – Uzumaki

18 – Terror nas grandes editoras, parte 1

17 – Do cinema para os quadrinhos: Evil Dead/Army of Darkness

16 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte final

15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto

14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1

13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas

12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura

11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz

10 – EC Comics, parte 3: o fim

9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga

8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)

7 – EC Comics, parte 2: o auge

6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional

5 – EC Comics, parte 1: o início

4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo

3 – A Era de Ouro dos comics de terror

2 – Beladona

1 – As histórias em quadrinhos de terror: os primórdios

Autor: Amanda Paiva

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