Sarjeta do Terror #49 – The Heap, o pai dos monstros do Pântano

Leitores de quadrinhos de super-heróis já estão acostumados com personagens de editoras diferentes que são parecidos demais uns com os outros (Arqueiro Verde e Gavião Arqueiro, Namor e Aquaman, sem contar personagens mitológicos como Hércules e de domínio público como Drácula e Frankensten – apenas para citar alguns), com fãs constantemente brincando com essa semelhança. Dois exemplos clássicos são O Homem-Coisa (Marvel Comics) e Monstro do Pântano (DC Comics).

Lançados com apenas dois meses de diferença e com criadores que chegaram a dividir quartos, é fácil pensar que um seja “cópia” do outro. Mas a verdade é que ambas as editoras aproveitaram-se da flexibilização do Comics Code Authority para voltar a fazer quadrinhos com monstros e ambos acabaram provavelmente inspirados por outra criação, bem anterior (e que também teria um retorno mais ou menos no mesmo período): The Heap.

Para conhecer mais sobre o personagem, precisamos voltar até os anos 40, quando a editora Hillman Periodicals publicava uma revista chamada Air Fighter Comics, protagonizada por diversos heróis aviadores como Airboy e Skywolf. Em uma história chamada “Wanted by the Nazis”, escrita por Harry Stein e desenhada por Mort Leav, Skywolf se depara com a criatura, que ela captura seu arqui-inimigo, Coronel Von Tundra. A história apareceu na edição #3 de Air Fighter Comics.

O original – a versão Hillman

O Barão Eric von Emmelmann era um piloto alemão que em 1918 foi abatido no pântano de Wausau, próximo da cidade de Rodz, na Polônia. Seu corpo lentamente se fundiu ao pântano, junto com sua vontade de sobreviver e retornar ao mundo dos vivos. 20 anos depois, com a vegetação do pântano substituindo seu corpo, o barão reemergiu, agora outra criatura, um enorme humanoide metade planta, confusa e com mente mais animal que humana que era forçado a drenar sangue de animais para conseguir oxigênio.

Nas suas primeiras aparições, o monstro era branco e mais lembrava um Yeti (Homem das Neves). Conforme o tempo foi passando, seu visual foi mudando, mas sua principal característica era uma tromba de galho (que lembra muito a tromba do visual do Homem-Coisa, da Marvel). Inicialmente, a criatura buscava apenas aves, cães e gado para saciar sua “fome” e apenas atacava homens que considerasse malignos, o que lhe deu fama ao longo da Europa e Ásia. Em sua primeira aparição, The Heap era um dos antagonistas, mas logo começou a aparecer esporadicamente na revista em histórias próprias. Nelas, a criatura perambulava pelo mundo, incompreendido pela humanidade. Entre os artistas que desenharam o personagem estavam Jack Abel, Paul Reinman, e Ernie Schroeder.

Nos anos 50, quando s quadrinhos de terror se tornaram febre nos EUA, The Heap foi o “carro chefe” da Hillman no quesito monstros, até o encerramento da editora, em meados dos anos 50.

A versão Skywald

Nos anos 70, quando o Comics Code sofreu revisões que permitiram acomodar alguns tipos de monstros nas histórias em quadrinhos, começaram a surgir outras criaturas do pântano. Além dos já bem conhecidos da Marvel e da DC, a Skywald Publications (que buscava seguir a tradição da Warren e do horror vitoriano clássico) trouxe uma versão desse personagem, sugerida por Gerry Conway, um dos criadores do Homem-Coisa e fã confesso do Heap dos anos 40-50.

Nessa versão (que era apenas inspirada pelo original), The Heap era Jim Roberts, que acidentalmente colidiu sua aeronave usada na agricultura em um tanque de gás dos nervos líquido de um lixão tóxico militar e acabou sendo transformado em um monstro cinza/verde (dependendo da colorização interna ou da capa) bem diferente da versão dos anos 40.

O Heap da Skywald era uma espécie de “Cara de Barro” (vilão do Batman) em termos de composição. Era como uma lama radioativa gigante e indestrutível, pois balas atravessavam seu corpo sem que ele sofresse qualquer dano. Apesar dessas características, essa versão do personagem mantinha sua inteligência humana e suas histórias exibiam a angústia do monstro conforme ele vagava pelo mundo tentando encontrar uma cura – ou conseguir se matar.

O personagem teve sua primeira aparição em Psycho #2 (1971) e passou a aparecer periodicamente na revista. Também apareceu na revista Nightmare e em uma edição one-shot própria, no qual dividiu espaço com outras histórias.

As versões Eclipse e Image

Em 1986, alguns personagens da Hillman periodicals foram comprados pela Eclipse Comics, incluindo Airboy e The Heap, com seu visual clássico minimamente remodelado. A Eclipse lançou então uma revista mensal de Airboy onde o monstro era personagem coadjuvante. Além disso, ele também apareceu na revista The New Wave. A revista Airboy era escrita por Chuck Dixon e foi desenhada por artistas como Paul Gulacy, Ron Randall, Graham Nolan, Adam Kubert, e Andy Kubert. Durou até 1989, totalizando 50 edições.

A Eclipse Comics foi à falência nos anos 90 e suas propriedades intelectuais foram adquiridas pela Image Comics, inclusive The Heap, que foi revisitado por Todd Mcfarlane na revista Spawn. Nessa nova versão, The Freak (vilão do personagem) ordena seus homens que matem Spawn, um deles guarda parte do seu Necroplasma. Quando freak o mata, o necroplasma é deixado num beco e é encontrado por Eddie Beckett, que decide ficar com aquilo. Quando um ladrão o mata, o necroplasma toma controle do seu corpo e se funde ao lixo próximo criando The Heap.

Visualmente, a versão da Image é bastante diferente das versões anteriores e mais alinhada com as idiossincrasias típicas da editora nos anos 90 – garras, dentes e olhos grandes, unhas pontudas, etc. The Heap apareceu em três edições de Spawn: #68, #73 e #74.

Outros “monstros do pântano”

The Heap foi bastante influente nas criaturas pantanosas que se seguiram, mas não foi o primeiro do tipo. Um dos mais conhecidos vem do conto It!, de Theodore Sturgeon. Publicado originalmente na revista “Unknown”, em 1940, foi adaptado para os quadrinhos pela Marvel Comics em 1972 na primeira edição da revista “Supernatural Thrillers”.

A Marvel, aliás, usou e abusou de monstros do gênero pantanosos (que lá nos EUA são chamados de “muck monsters”). Além do Homem-Coisa e da adaptação de It, The Incredible Hulk #121 (1969), escrito por Roy Thomas, figura o monstro verde enfrentando uma criatura chamada “The Glob”, um óbvio pastiche do Heap original. E, em Sub-Mariner #72 (1974), Namor enfrenta “The slime-Thing”. Vale citar também uma história publicadas em “Marvel’s – What the —?” #6 (1990), que mostra “Man Thang” enfrentando “Swamp Thang”, numa hilária metanarrativa sobre que personagem é o mais “original”.

A DC Comics também não ficou de fora da “febre” dos muck monsters. Além do mais famoso da editora, apresentado pela primeira vez em House of Secrets #92 (1971), também teve um “swamp-god” (deus do pântano) em House of Mystery #217 (1973), numa história desenhada por Alfredo Alcala (que, mais de uma década depois, seria um dos desenhistas do Monstro do Pântano). Antes de todos esses personagens, no entanto, a DC criou outro que também pode ser considerado um dos “muck monsters” mais famosos dos quadrinhos: Solomon Grundy. Criado por Alfred Bester e Paul Reinman, o personagem surgiu em All-American Comics #61 (1944) como vilão do Lanterna Verde da Era de Ouro (Alan Scott) e se tornou um dos vilões mais conhecidos fora dos quadrinhos (muito provavelmente por suas aparições como membro da Legião do Mal no desenho dos Superamigos e suas aparições nas animações Liga da Justiça e Liga da Justiça – sem Limites). Solomon Grundy era um rico mercados do século 19 chamado Cyrus Gold, que é assassinado e jogado num pântano perto de Gotham City. 50 anos depois, seu corpo, composto parcialmente da matéria pantanosa que o envolvia, é reanimado com sem memória de sua vida anterior. Uma das únicas coisas que ele lembra é que ele nasceu numa segunda, então ele adota o nome do personagem de uma cantiga de roda – que também nasceu numa segunda.

A Eclipse Comics, além de trazer de volta o personagem original da Hillman, também fez uma paródia do Monstro do Pântano da DC Comics (numa espécie de “fechamento de ciclo”, por assim dizer?). A criatura se chamava “Sump Thing” (a Coisa da Fossa, em tradução livre) e apareceu na segunda edição da revista The Mighty Mites.

Apesar de não ser o primeiro, The Heap certamente influenciou todas as criaturas estilo “muck monster” que se seguiram depois nos quadrinhos e merece ser lembrado como parte das histórias dos quadrinhos de terror.

Curiosidades:
– The Heap chegou a ter um “parceiro mirim”. Em uma de suas histórias, foi enviado para os EUA para causar destruição e acabou cruzando o caminho de um jovem chamado Rickie Wood, que tinha um avião alemão de controle remoto. A relação entre os dois, no entanto, era um pouco diferente: Rickie sabia que o monstro nunca o machucaria, mas não concordava com suas atitudes (tanto que tentou destruí-lo diversas vezes). Levou um tempo para o garoto descobrir que sua ligação com o monstro era devido ao seu avião de controle remoto alemão, resquício da vida anterior da criatura;
– The Heap original chegou a ser publicado no Brasil em 1953 com o nome de “O Monstro”, na revista “Mundo Juvenil”, que também publicava as histórias de Airboy;
– A versão da Image foi publicada no Brasil pela Abril jovem com o nome de “Entulho” nas revistas do Spawn (números 73. 74 e 75).

Edições anteriores:

48 – Criadores de Terror: Steve Ditko

47 – 30 Dias de Noite

46 – Irmãs dos Contos da Cripta

45 – Contos da Cripta, dentro e fora dos quadrinhos

44 – Criadores de Terror: Reed Crandall

43 – Skywald Publications e o clima de horror

42 – Vampirella

41 – O Homem Coisa

40 – Os quadrinhos de terror no Brasil: Criadores e Criaturas

39 – Os quadrinhos de terror no Brasil: parte 2

38 – Os quadrinhos de terror no Brasil: parte 1

37 – Apresentadores de terror (Horror Hosts)

36 – Dylan Dog

35 – Monstro do Pântano (parte 2 de 2)

34 – Monstro do Pântano (parte 1 de 2)

33 – Criadores de Terror: Bernie Wrightson

32 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Estranho

31 – Os 70 anos de Eerie #1

30 – Plantão Sarjeta do Terror – Sombras do Recife

29 – Criadores de Terror: Rodolfo Zalla

28 – Da TV para os quadrinhos: Além da imaginação

27 – Vigor Mortis Comics – Volume 1

26 – Super-heróis com um “pé” no terror: O Espectro

25 – Warren Publishing: Contornando o Comics Code

24 – Prontuário 666, os anos de Cárcere de Zé do Caixão

23 – Da TV para os quadrinhos: Arquivo X

22 – Criadores de Terror: Eugenio Colonnese

21 – Terror nas grandes editoras, parte final

20 – Terror nas grandes editoras, parte 2

19 – Uzumaki

18 – Terror nas grandes editoras, parte 1

17 – Do cinema para os quadrinhos: Evil Dead/Army of Darkness

16 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte final

15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto

14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1

13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas

12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura

11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz

10 – EC Comics, parte 3: o fim

9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga

8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)

7 – EC Comics, parte 2: o auge

6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional

5 – EC Comics, parte 1: o início

4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo

3 – A Era de Ouro dos comics de terror

2 – Beladona

1 – As histórias em quadrinhos de terror: os primórdios

Autor: Amanda Paiva

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