Batman: Lendas do Cavaleiro das Trevas – Alan Davis


Lançado em dois volumes, o especial Batman: Lendas do Cavaleiro das Trevas – Alan Davis traz as participações marcantes do desenhista a frente do Cruzado Encapuzado, aparições quase sempre clássicas, apesar de serem do baixo número em comparações com tantos outros artistas recorrentes do Morcego. A primeira das histórias reúne a equipe criativa formada pelo homenageado desenhando, pelos roteiros de Michael W. Barr e arte final de Paul Neary. A união entre os três se alastraria pela maioria das histórias mostradas, e resgataria uma face mais escapista do herói, distanciando-o da figura concebida por Frank Miller no mesmo ano de 1986, em O Cavaleiro das Trevas.

Qualquer resenha de quadrinhos deve levar em conta a face que Barr escolhe para Batman, associando-o a um personagem mais vívido e falante, diferenciando-se demais da figura sombria que alguns fãs costumam idolatrar. Seu comportamento é repleto de cores, acompanhado de seu sidekick, que distribui sopapos e frases de efeito de modo indiscriminado, e que tem intimidade suficiente até para discutir com seu parceiro sobre seus envolvimentos amorosos com a Mulher-Gato.

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O foco deste arco é na relação entre o trio de justiceiros, e a tentativa do Coringa em tentar corromper o ethos da felina, que estava agora alistada junto a bat-família. A trama começa por Detective Comics #569 e mostra Jason Todd como um Robin não tão rebelde quanto o visto em Morte em Família, ao contrário, seu comportamento é submisso, ainda que já flerte com alguns indícios da puberdade em ebulição. É curioso como essa confusão hormonal faz uma combinação com a lavagem mental que sofre a vigilante Selina Kyle, após uma intervenção do Coringa, que tenta adequá-la a sua insana e torpe psique bandida.

Curioso como os eventos que ocorrem pouco tem consequências práticas, mesmo com rompimentos que em um drama adulto, seriam bastante sérios. Os roteiros não passam do ordinário, na verdade valem menção pelo traço fino de Alan Davis, e por poucas referências, como a previsão da morte de Jason Todd, em um pequeno chiste após uma luta com o Espantalho.

Em O Livro do Juízo Final, há uma homenagem ao cinquentenário da Detective Comics, reunindo detetives do cânone da cultura pop, mostrando o modo de operar dos investigadores. A narração começar por Mister Bradley, um detetive particular que faz referência direta as novelas noir, que obviamente influenciaram Bob Kane e Bill Finger na criação do Cruzado Encapuzado. As partes da história mudam de equipe artística frequentemente, exibindo um caráter despretensioso, que tem o mérito de referenciar Sherlock Holmes de modo muito reverencial, em um momento emocional no desfecho do primeiro volume.

LENDAS_ALAN_DAVIS_4Os registros dão sequência a uma aposentadoria forçada do Chapeleiro Louco, após um tratamento psiquiátrico cuja terapia era ligada a sublimação de sua obsessão por chapéus. Logo o paradigma muda e ele retorna a vida de crimes, engendrando um ataque que quase mata Jason Todd. O acontecimento serve basicamente para retomar a relação com Leslie Thompkins, e também, para relembrar os laços afetivos entre a mãe adotiva e o pequeno Bruce Wayne, recém órfão e tão afeito a marginalidade quanto foi a história de Jay Todd.

O volume segundo inicia o arco que foi posteriormente denominado Ano Dois, já que pela ideia original de Mike W, Barr não o era. O único volume desenhado por Alan Davis marcou o fim de seu primeiro ciclo em Detective Comics, ainda inconcluso o trabalho narrativo. O retorno se daria na saga Full Circle, lançada em 1991, até então inédita em edições brasileiras. Círculo Completo tem um tom um pouco mais acinzentado que as outras histórias de Barr e Davis, assim como foi em Batman Ano Dois e mais próximo do visto nas histórias do roteirista que remontam a disputa ideológica entre o Morcego e Ras All Ghull, inclusive mostrando um paralelo com o antagonista, vista no proto-Batman que seria a figura do Ceifador e seu alter ego, semelhante até fisicamente com o Cabeça de Demônio.

O tom retorna ao sombrio, ainda que haja um tom de amálgama entre o herói calado e o escapismo típico da dupla de autores a frente das histórias do cruzado. O retorno do Ceifador resgata a discussão do ultra-moralismo e do fascismo derivado dessa caça indiscriminada a vilões e marginalizados, quase sempre punindo os personagens que tem no sexo e na promiscuidade o cerne de seus comportamentos.

A narrativa tenta justificar alguns dos estranhos conceitos vistas em Ano Dois, como a união entre Joe Chill e Batman, com uma interessante trama de legado, com o filho de Joe envolvido diretamente com a trama de banditismo, envolvendo também um laço familiar, que faz eco na paternidade adotiva de Wayne com Dick Grayson. A história acaba por ter mais significado a partir do momento em que foca em resgatar os traumas de infância dos personagens, uma vez que se investiga a motivação de vingança de cada um, separando bem o que ocorreu como Wayne e Chill, pondo-os em lados opostos da lei, mas igualmente cegos, graças a dor da perda que ambos tiveram.

De certa forma a ação do menino prodígio faz lembrar a trama vista no resgate do Robin de Chris O’Donnell em Batman Eternamente, que também salva o herói sem a sua “autorização”, ainda que a receptividade na revista seja muito mais positiva do que no filme de Joel Schumacher, até porque o efeito na ação do vigilante foi de inspiração, para que ele saísse da armadilha e finalmente enfrentasse fisicamente seu opositor.

O tomo é bastante violento, até para os padrões de Michael W. Barr, compondo assim uma ótima despedida de Alan Davis do título, conseguindo imprimir uma história final interessante e de tom diferenciado. O volume dois termina com uma breve história em preto e branco, denominada Saideira no McSurley’s, que também possui uma temática de violência urbana, fugindo da pecha de história escapista, que em suma, mostram a versatilidade de Alan Davis em produzir histórias de teor tão diferentes.

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“O Sonho NÃO acabou”, um papo com Leandro Luigi Del Manto – Parte 1

Por Vagner Abreu – especial para o ArgCast

Olá galera!

A partir dessa semana, o Imatéria fará uma breve pausa. Acontece que estou fazendo uma pesquisa envolvendo a obra máxima de Neil Gaiman – a HQ Sandman – e eis que esse grande profissional da indústria dos quadrinhos e (posso dizer com orgulho) grande amigo meu, Leandro Luigi Del Manto, ofereceu apoio – certo, isso foi lá em Abril.

Obviamente, não seria eu o louco a perder a oportunidade de conversar com o homem responsável pela publicação na íntegra de Sandman no Brasil (Globo) – também editou uma porrada de obras geniais como Crise nas Infinitas Terras, Ronin e Batman: O Cavaleiro das Trevas pela Abril.

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Como tenho muito carinho pelos meus leitores aqui no Dínamo Studios, deixei de lado todas as pesquisas que estava fazendo para editar esse bate-papo para converter em um conteúdo exclusivo somente para quem nos segue!

Então, tome um chazinho para dormir, vista seu pijama e prepare-se para sonhar nessa primeira parte da entrevista que promete muitas revelações sobre a história das HQs no Brasil!

Já está pronto? Então…

Tenha Uma Boa Noite!

Parte 1 – A História das HQs Adultas no Brasil.

Vagnerd: Como foi que você começou a trabalhar como editor na Globo? Conte-nos tudo. Desde quando começou a trabalhar na editora até tornar-se editor-chefe.

Leandro Luigi Del Manto: Eu terei de me estender um pouco mais aqui, porque preciso contar quando comecei a trabalhar com quadrinhos em 1987, na Editora Abril. Lá foi a realização de um sonho de moleque.

A_Espada_Selvagem_de_Conan_01_(1984)Eu adorava as revistas de super-heróis da Marvel e DC publicadas pela Abril e era fascinado pela Espada Selvagem de Conan, um material bem mais adulto na época. Por causa dessa paixão toda, eu vivia mandando cartas com perguntas sobre lançamentos e, como eu comecei a acompanhar também algumas edições americanas, indagava quando é que iriam publicar determinadas histórias. Por causa disso, surgiu uma oportunidade de trabalhar na Redação de Quadrinhos.

A princípio, comecei como Assistente de Produção… Algo como um Office-boy interno, o garoto que xerocava as revistas pra mandar pros tradutores ou coloristas; o cara que ficava carimbando as páginas antes dos Editores fecharem as revistas, essas coisas.

O Primeiro Desafio da Carreira (na Abril)

Del Manto: Em questão de umas duas semanas, surgiu uma oportunidade de traduzir uma história com urgência, tipo fazer no final de semana, sabe? Era uma história dos X-Men com o Monolito Vivo, quase uma aventura solo do Havok. Como não tinha ninguém ali na hora que topasse a missão, me ofereci pra fazer. Me olharam meio desconfiados, mas resolveram me passar o teste. Ninguém sabia que eu já havia lido aquela história umas trocentas vezes na edição americana e foi uma moleza traduzir no final de semana. Detalhe: em 1987, tive de datilografar tudo (nada de computador!)…

Na Segunda-feira, entreguei a tal tradução e fui aprovado. Daí, alguns dias depois, mudanças internas na Editora abriram a vaga para um Editor, mas eu não podia ser promovido ao cargo porque não era Jornalista… Então, deram um “jeitinho” e fui promovido a Tradutor, mas exerceria as funções de um Editor. Foi tudo muito rápido e num momento incrível dos quadrinhos no Brasil.

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Lá eu tive o privilégio de editar obras fantásticas, como Batman: O Cavaleiro das Trevas, Crise nas Infinitas Terras, Ronin, Watchmen, Monstro do Pântano (do Alan Moore), Batman Ano Um, Demolidor (a fase de Miller e Mazzucchelli), Thor (do Walt Simonson), Questão, Super-Homem (de John Byrne), Mulher-Maravilha (de George Perez), e tantas maravilhas que me deram muita satisfação. E, é claro, editei a Espada Selvagem, que era a minha revista predileta!

Ah! Preciso contar uma coisa que será importante para daqui algumas linhas… Eu fui Editor da revista Superpowers, que publicava sagas especiais da DC (tipo uma Grandes Heróis Marvel, mas da DC).

Primeiro Contato com Sandman

Del Manto: Quando estava finalizando o fechamento da edição # 6, só com histórias do Monstro do Pântano escritas pelo Alan Moore, o Diretor Comercial (na época, o Eduardo Macedo), cismou que a capa era muito feia e não tinha apelo de vendas, não chamaria atenção dos leitores nas bancas.

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Ele me chamou na sala dele e tentei explicar que aquela capa era bonita e que tinha apelo, pois era o encerramento de uma saga do personagem e coisa e tal. Mas não tinha jeito… Usei de todos os argumentos possíveis, mas ele parecia irredutível e queria que eu mudasse a capa. O problema é que não tinha nenhuma outra capa tão boa como aquela (e ele detestou todas as possíveis opções). Num dado momento, chegamos a discutir um pouco e cheguei a pensar que seria demitido naquele mesmo dia. Acho que acabei vencendo pelo cansaço e acabaram usando aquela capa mesmo.

Pouco tempo depois, ele foi contratado pela Editora Globo, rival da Abril naquela época. Isso foi no finalzinho de 1988. Nesse período, eu tinha recebido algumas coisas legais da DC Comics: uma revista estranha chamada Sandman e alguns exemplares de V For Vendetta.

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Fiquei enfeitiçado por Sandman. Era diferente de tudo o que eu havia lido até então! E “V” era um deslumbre, com uma arte fantástica e, ao mesmo tempo, retrô (totalmente britânica!), com uma narrativa densa e assustadora. Fiz de tudo para que publicássemos essas duas séries lá na Abril, mas elas não caíram muito nas graças do pessoal. Minha ideia era fazer uma revista de antologias, só com histórias adultas da DC, com Sandman, V, Wasteland, Swamp Thing, Hellblazer etc. Foi uma decepção, sabe?

Nota do Vagnerd: Pelo visto seria algo como o almanaque “Vertigo” que a Abril foi publicar somente em meados nos anos 1990 ou a revista que Panini publicava até recentemente. Poxa, que oportunidade de negócio que a Abril deixou de criar desde os anos 1980, eih?

A Mudança para a Globo

Del Manto: Daí, num belo dia, quem é que me liga na hora do almoço? O Eduardo, com quem eu tinha discutido por causa do Monstro do Pântano e tinha ido para a Globo!

Editora-GloboEle me perguntou se eu não gostaria de ir até a Globo pra conversar um pouco, pois queria me fazer uma proposta. Dei um jeito de ir até lá na parte da manhã e conversamos. Ele me disse que a Globo queria entrar pra valer no mercado de quadrinhos adultos e tinha, inclusive, licenciado alguns títulos que ele tinha certeza que eu iria curtir.

Eu perguntei quais eram, mas ele me disse que só poderia falar se eu aceitasse a oferta. O salário era tentador, mas a chance de começar toda uma linha editorial do zero, com toda a liberdade que um Editor poderia querer… Puxa!

Parecia uma oferta irrecusável. Acabei aceitando e, quando fiquei sabendo quais seriam os próximos títulos que eu iria editar, quase caí da cadeira: Fantasma (a série de 13 números da DC); Marada, a Mulher-Lobo; Orquídea Negra (de Gaiman e McKean); Akira; e… SANDMAN!!!

Vagnerd: Qual foi seu primeiro contato com o Sandman do Neil Gaiman? Quando foi isso? Foi antes da revista ser publicada no Brasil? Antes de começar a editar a revista você conhecia o personagem?

Del Manto: Como disse na resposta anterior, meu primeiro contato com a obra do Neil Gaiman foi com a edição americana, ainda na época da Abril. No primeiro número da edição brasileira pela Globo, eu escrevi um editorial contando um pouco sobre isso… Foi curioso.

Eu peguei o # 1 americano pra ler dentro de um ônibus a caminho da minha casa, após uma festinha de final de ano na editora. Quando comecei a ler a revista, vi que se tratava de algo especial e decidi que iria ler em casa, com mais calma e atenção.

Quando cheguei em casa, li a revista inteira, escutando a trilha sonora do filme As Bruxas de Eastwick de fundo. Fiquei apaixonado pela história. Eu não conseguia entender por que uma revista com uma capa tão fantástica tinha desenhos internos tão diferentes, estranhos até.

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Mas o que me cativou na revista não foi exatamente sua arte. Foi o texto. A história tinha um “quê” de mágico. Palavras muito bem escolhidas e colocadas. Frases fantásticas. E aquele clima de horror (não terror) sempre presente, mas que nunca se manifestava de fato.

Aleister_Crowley_1310No dia seguinte, reli a revista mais uma vez e fiquei buscando algumas referências em alguns livros sobre magia e ocultismo (sim, sempre fui fascinado por isso!). [Alester] Crowley e a Golden Dawn [A sociedade mística em que Crowley foi membro por um tempo], a doença do sono, conjurações… Nossa! Aquilo era especial demais!

Daí, comecei a me acostumar com a arte interna do Sam Kieth, que lembrava um pouco o Bernie Wrightson [Monstro do Pântano]. Eu conhecia o Sandman “meio pulp” da Era de Ouro e uma versão mais super-herói dos anos 1970, mas aquele Sandman ali era algo totalmente novo. Cada vez mais, o título foi me cativando. Foi como uma paixão antiga se transformando em amor.

Vagnerd: Qual foi a sensação que teve ao pegar a revista do Sandman da Globo nas mãos pela primeira vez?

Del Manto: Ah! Foi uma sensação boa demais! E um susto! Sim, porque ela foi impressa num papel errado. Desde o início, a revista deveria ser impressa num papel mais simples para baratear os custos. Apenas as séries fechadas e graphic novels seriam impressas num papel mais luxuoso… Não sei por que Diabos acharam que Sandman seria uma série fechada com apenas cinco edições.

Algumas publicidades e cartazes de banca chegaram a divulgar que teriam só cinco números… Vai entender…

Daí, tive de convencer o Gerente de Produto que, pelo menos, lançássemos as primeiras sete edições com aquele papel, pois tratava-se de um arco fechado de histórias e coisa e tal. Do contrário, já haveria a mudança de papel no segundo número… O que seria desastroso!

Mas, passado o susto, foi uma satisfação imensa poder segurar em minhas mãos aquele primeiro exemplar! E aqui merece um crédito especial… Eu queria que as quartas capas de Sandman trouxessem sempre uma imagem especial, talvez uma ampliação de algum detalhe interno, re-colorizado, algo do tipo.

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Daí o Editor de Arte da Redação de Quadrinhos da Globo, Hélcio “Jacaré” Pinna, teve a fantástica ideia de ampliar um detalhe da própria capa da edição, para manter uma harmonia de estilos e coisa e tal.

Naquela época, isso tudo tinha de ser imaginado e montado com “xeroxes” e indicações de ampliação fotográfica etc. Nós não sabíamos exatamente se o efeito ficaria bom ou não. Mas o resultado final ficou fantástico! E passamos a usar isso em todas as edições. O próprio Gaiman disse que ele e o Dave McKean adoravam as quartas capas que fazíamos.

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Aguardem a semana que vem para conhecerem ainda mais sobre a carreira do editor que fez “o sonho não acabar”. Por falar nisso, também falaremos sobre a batalha para levar o título do Morpheus até o final.

E mais: Del Manto contará sobre a ligação por telefone mais sinistra possível!

Não sabe o que é Sandman ou está a fim de reler esse quadrinho onírico? Por favor, clique nesse link ou nesse aqui e adquira já o seu exemplar.

É isso, você vai ter um pesadelo se perder a continuação…