Nem só de super-heróis vivem os quadrinhos, nem os internacionais, nem os nacionais. E se as hqs de super-herói sempre tiveram lugar nos corações dos brasileiros, outro gênero que se equipara em termos de “paixão nacional” é certamente o terror. Assim como os supers, o terror esteve embutido nos quadrinhos nacionais desde muito cedo – e não é a toa, uma vez que tanto o horror quanto os super-heróis derivam principalmente das hqs pulps, que chegaram aqui no Brasil ainda nas primeiras décadas do século XX.
Para rastrear a história do terror nos quadrinhos brasileiros, precisamos voltar no tempo, até uma época em que os quadrinhos “dramáticos”, ou seja, aqueles que não eram destinados exclusivamente ao humor, estavam começando. No Brasil, esta época é os anos 30, quando os jornais contavam com encadernados internos chamados suplementos, destinados à publicação de quadrinhos. Normalmente, estes suplementos continham histórias não muito diferente do que havia nos EUA na época. Inicialmente, a quase totalidade das histórias publicadas eram comics, hqs norteamericanas vendidas pelos “Syndicates”, que era quem detinha os direitos de personagens como Fantasma, Buck Rogers, Flash Gordon, Tarzan, entre outros.
Os pioneiros
1934 serve como um marco nas hqs seriadas brasileiras por conta da publicação de “Os exploradores da Atlânitida ou As Aventuras de Roberto Sorocaba”, de Monteiro Filho. A estrutura narrativa era emprestada dos seriais de cinema, onde cada página terminava com um gancho para a próxima história, que seria publicada na próxima edição do jornal. A partir daí, diversos outras hqs semelhantes se seguiram, como João Tymbira (1938), de Francisco Acquarone, e O Audaz (1939), de Messias de Mello.
A primeira hq de terror publicada no Brasil foi Doutor Oculto, personagem da DC Comics, numa edição de 1937 do suplemento Mirim. Mas o primeiro personagem tupiniquim que pode ser considerado o precursor das histórias de terror nacionais foi A Garra Cinzenta (1937). Publicado diariamente na Gazetinha – um suplemento do jornal Gazeta de São Paulo – Garra Cinzenta misturava elementos de histórias policiais, noir e de terror, com nível de violência bastante elevado para a época. Além disso, trazia também alguns aspectos de sci-fi e do que futuramente seria conhecido como o gênero de super-herói. Garra Cinzenta foi publicado de forma seriada durante pouco mais de 100 capítulos (cada capítulo era uma página da história).
Garra Cinzenta, como todos os personagens nacionais da época, não possuía uma “identidade nacional” desenvolvida, sendo basicamente uma versão das histórias pulp dos comics, incluindo nomes em inglês e locações que mais lembravam as metrópoles americanas do que as brasileiras. Mas foi a primeira criação nacional que trouxe elementos tantos das hqs policiais, quanto das hqs de super-herói, ficção científica e de terror, inaugurando a produção nacional do gênero.
Garra Cinzenta ficou basicamente sozinho por um bom tempo dentro desse nicho, tendo como companheiros, além das publicações americanas, apenas publicações nacionais mais voltadas para o humor, aventura e/ou ficção científica. Foi só em 1949 que surgiu a primeira revista em quadrinhos dedicada ao terror, chamada O Terror Negro, da editora La Selva (fundada na metade da década de 1940).
Curiosamente, de início ela não era uma revista de terror, e sim protagonizada por um super-herói: Black Terror, que era o Terror Negro do título. O personagem, no entanto, foi um fracasso de vendas e, para não encerrar a publicação, a La Selva decidiu manter a revista com o mesmo nome, mas agora publicando hqs de terror norteamericanas. A La Selva ainda publicaria as revistas Contos de Terror (1954), Sobrenatural (1954), Frankenstein (1959), Pavor e Terror (1960), Almanaque de Terror (1960) e Histórias de Terror (1961), além de edições especiais diversas.
A editor e gráfica Novo Mundo, que imprimia as hqs da La Selva, pegou gosto pelas revistas de Terror e lançou suas próprias publicações, das quais vale destacar Gato Preto (1955), Noites de Terror, (1959), Mundo de Sombras (1962) e Sombra do Pavor (196?). A La Selva, para evitar que a Novo Mundo parasse de imprimir suas revistas, comprou a editora, mantendo os títulos que vendiam bem, como Noites de Terror.
As editoras
A Bloch, editora fundada em 1952, se aventurou pelos super-heróis da Marvel nos anos 70 e também foi uma das editoras que mais lançou títulos de terror. Dentro do seu selo “Capitão Mistério”, voltado para o gênero, a Bloch publicou Aventuras Fantásticas, Histórias Macabras, Frankenstein, Clássicos de Pavor, A Múmia Viva, Lobisomem, Sexta-Feira 13 e A Tumba do Drácula (1976), além de Cine-Mistério (1977), Conde Drácula (1979), Kriminal (1980), Satanik (1980), Drácula (1982) e Histórias Reais de Drácula (1987). Já a editora Abril, fundada em 1950, é mais conhecida hoje por seu período publicando super-heróis da Marvel e da DC no Brasil. Mas isso incluiu também Terror de Drácula (1979), revista que trazia a versão Marvel do Vampiro, vista originalmente em Tomb of Dracula.
Enquanto a maior parte do catálogo das outras editoras consistia de hqs antigas vindas dos EUA, a RGE de Roberto Marinho trabalhou com o material que estava sendo produzido pela Warren Publishing. Desse conteúdo surgiu a revista Kripta (1976), possivelmente a mais conhecida revista em quadrinhos de terror brasileira, que em grande parte trazia o material publicado originalmente na revista Creepy. Além destas, a RGE publicou, entre outros especiais e almanaques, Shock (1977), Fetiche, Dr. Corvus, Pânico e Seleções de Terror (1979), além de Vampirella (1980), que havia sido publicada anteriormente pela editora Noblet, em 1977.
O advento do Comics Code Authority nos EUA e o subsequente banimento dos comics de terror nas terras do Tio Sam criaram um pequeno problema para os editores brasileiros, que publicavam maciçamente o materiais de editoras como a E.C. Comics. Com a escassez de material americano, mas uma demanda constante do público brasileiro, José Sidekerskis, Victor Chiodi, Heli Otávio de Lacerda, Cláudio de Souza, Arthur de Oliveira e Miguel Penteado criaram, em 1959, a Editora Continental (que em 1961 passaria a se chamar Outubro) e iniciaram um verdadeiro movimento, publicando apenas hqs produzidas no Brasil por autores brasileiros (ou residentes no Brasil).
A Continental/Outubro publicou histórias nacionais de todos os tipos, de faroeste a ficção científica, passando por humor e, é claro, terror, pelo qual ficou conhecida. Entre os títulos de terror mais conhecidos, estavam Seleções de Terror (1959), Histórias Macabras (1961) e Histórias do Além (1965). Foi na Outubro que se destacaram autores que seriam considerados monstros das hqs nacionais, como Flávio Colin, Júlio Shimamoto, Aylton Thomaz, Inácio Justo, Getúlio Delphim, Gedeone Malagola, Sérgio Lima, Juarez Odilon, Nico Rosso, Lyrio Aragão, Luís Saidenberg, Gutemberg Monteiro, todos capitaneados por Jayme Cortez, considerado o responsável por esta primeira onda de hqs nacionais.
Em meados dos anos 60, Miguel Penteado deixa a editora Outubro e funda a GEP, junto com Luiz Vicente Neto. De início apenas prestando serviços para terceiros, tornou-se uma editora pouco tempo depois e publicou revistas de terror como Lobisomem (1966), Estórias Negras (1966), Estórias Diabólicas (1966) e O Esquife (1968), além de almanaques e especiais. Entre os artistas que trabalharam na GEP estavam Gedeone Malagola (Raio Negro) e Edmundo Rodrigues (Irina, A Bruxa), além de Rodolfo Zalla.
Outro “filho” da Outubro foi a editora Taika, surgida em 1966. Mas, diferente da GEP, criada por Penteado após sair da editora, a Taika era a própria Outubro, que teve que mudar de nome. Como Taika, a editora publicou Seleções de Terror (1966), Naiara – A filha do Drácula (1967), Almanaque do Drácula (1968), Histórias Satânicas (1971), Clássicos de Terror (1976), Zarapelho (1976), Contos de Terror (197?) e Fantásticas Aventuras (1973), entre outros.
Mas nem só de Outubro viveu o terror nacional nos anos 60 e 70. Inspirados pelas publicações nipônicas que importavam para os descendentes de imigrantes japoneses no Brasil, Jinki Yamamoto e Minami Keizi fundaram a Edrel, em 1966. As publicações da Edrel eram variadas, mas incluíram títulos de terror como Revista de Terror (1969), Monstros da Noite (1970) e Terror Especial (1973), além de almanaques diversos. Além disso, a Edrel publicou também o personagem Fikom (republicado recentemente pela editora Kalako) e Satã, a Alma Penada, criados por Fernando Ikoma.
Fundada por um dissidente da Edrel, a Roval publicou alguns álbuns e almanaques de terror, como O Monstro de Frankenstein (197?) e Medo (197?). A EBAL, de Adolfo Aizen, chegou a publicar hqs de terror da DC Comics entre os anos 70 e 80, como Histórias de Assombração (1977), Eu…Vampiro (1981) e Histórias da Casa Mal-assombrada (1982).
A Ideia Editorial foi uma editora que durou pouco, mas deve ser lembrada por ter procurado além mar por outras hqs de terror. Assim, tem como mérito a publicação de diversas clássicas hqs eróticas de terror italianas como Zora e Vampi. Entre as revistas lançadas pela editora estão Histórias de Boris Karloff (1976), Histórias Inacreditáveis (197?), Frígida (1980), Conde Dinho (1980), Playcolt (1980), Zora (1980) e Vampi (1980).
A editora Vecchi, fundada em 1913 e provavelmente uma das primeiras editoras a publicar quadrinhos no Brasil, também se aventurou pelo terror, especialmente nos anos 70 e 80, fazendo história. A publicação mais conhecida foi, sem dúvida, a revista Spektro, lembrada até hoje pelos entusiastas do gênero. Inicialmente, Spektro publicava as hqs de As Histórias Sobrenaturais do Doutor Spektro, da americana Gold Key. Mas como havia pouco conteúdo desse personagem e a recepção foi boa, a revista passou a publicar histórias de outras editoras americanas, como Dr. Morte e Dr. Mistério, da Fawcett, republicações de histórias da La Selva e mais adiante, conteúdo da Charlton Comics (que nem sempre eram de terror e pendiam também para a ficção científica). Isso sem contar no forte conteúdo nacional, que incluía criaturas folclóricas brasileiras como boiúna, mapinguari, papa figo e temas tipicamente brasileiros, como macumba. Além da Spektro, a Vecchi publicou também Sobrenatural (1979), Histórias do Além (1980), Pesadelo (1980), Almanaque das assombrações (1981) e Almanaque de Terror (1982), entre outros especiais.
Muito ainda se poderia falar sobre esse assunto, que é inesgotável, então peço desculpas de antemão por quaisquer omissões da minha parte. Na próxima matéria, vamos conhecer um pouco do que foi feito de terror no Brasil a partir dos anos 80.
Curiosidades:
– No início do século 20, antes do advento da televisão, os espectadores tinham que assistir suas séries favoritas no cinema. Eram os “serials”, normalmente histórias de aventura cujos episódios eram disponibilizados no cinema, sempre encerrando com um cliffhanger para o próximo (A série Batman, dos anos 60, usou essa técnica em seus episódios, como homenagem a esta “era de ouro” das histórias seriadas);
– Doutor Oculto foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, os mesmos criadores do Superman. No entanto, os autores não assinavam seus verdadeiros nomes, e sim como Leger e Reuths;
– Foi na Editora Continental que surgiu Bidu, a primeira revista de Maurício de Sousa, além do primeiro super-herói brasileiro, o Capitão 7;
– A editora Outubro teve que mudar de nome porque a Abril colocou a empresa na justiça, alegando que tinha registrado todos os meses do ano para nomes de editoras. A Abril ganhou a ação e a Outubro teve que mudar de nome novamente (uma vez que havia começado como Continental), tornando-se Taika.
Edições anteriores:
37 – Apresentadores de terror (Horror Hosts)
35 – Monstro do Pântano (parte 2 de 2)
34 – Monstro do Pântano (parte 1 de 2)
33 – Criadores de Terror: Bernie Wrightson
32 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Estranho
30 – Plantão Sarjeta do Terror – Sombras do Recife
29 – Criadores de Terror: Rodolfo Zalla
28 – Da TV para os quadrinhos: Além da imaginação
27 – Vigor Mortis Comics – Volume 1
26 – Super-heróis com um “pé” no terror: O Espectro
25 – Warren Publishing: Contornando o Comics Code
24 – Prontuário 666, os anos de Cárcere de Zé do Caixão
23 – Da TV para os quadrinhos: Arquivo X
22 – Criadores de Terror: Eugenio Colonnese
21 – Terror nas grandes editoras, parte final
20 – Terror nas grandes editoras, parte 2
18 – Terror nas grandes editoras, parte 1
17 – Do cinema para os quadrinhos: Evil Dead/Army of Darkness
16 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte final
15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto
14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1
13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas
12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura
11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz
10 – EC Comics, parte 3: o fim
9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga
8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)
7 – EC Comics, parte 2: o auge
6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional
5 – EC Comics, parte 1: o início
4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo