No próximo sábado (30) comemora-se o Dia do Quadrinho Nacional (e não o Dia nacional dos quadrinhos; parece, mas não é a mesma coisa) e, por conta disso, nada melhor do que dar uma lida em quadrinhos de horror nacionais. O Brasil é um país que sempre abraçou o terror ficcional com certa facilidade e, historicamente, o gênero inclusive rivaliza com os populares super-heróis em determinadas épocas.
Para celebrar o dia do quadrinho nacional, trago uma obra que está diretamente ligada, não só com o terror, mas também com um personagem essentia brasilis: Zé do Caixão. Mas, antes, um pouco de contextualização.
É difícil que algum brasileiro não conheça o nome Zé do Caixão. Apesar de ter ficado fora da mídia por muito tempo, o personagem criado por José Mojica Marins se enraizou no inconsciente coletivo da população de forma tal que hoje é quase impossível não conhecê-lo. Atualmente, no entanto, talvez o personagem esteja mais atrelado à uma imagem cômica do que uma imagem assustadora.
O que é uma pena porque Zé do Caixão, quando foi criado, não era nada engraçado. Um homem amargurado, de poucos amigos que assombrava uma cidadezinha conservadora com sua postura ateísta. Um homem que não tinha crenças, e a única coisa na qual confiava era a ciência. Alguém que não respeitava nada, a não ser suas próprias convicções… E as crianças. Sim, porque, segundo sua visão, as crianças são a janela para o futuro. A herança genética que as crianças recebem de seus pais é a única forma de manter um legado vivo. A verdadeira imortalidade, segundo o próprio personagem, é o sangue. Por isso ele passa seus dias conduzindo experimentos em busca de encontrar a mulher ideal, aquela que lhe dará o filho perfeito.
Quem não conhece muito a fundo Zé do Caixão pode se surpreender com esse perfil descrito do personagem. Isso porque, hoje em dia, Zé do Caixão se tornou um personagem atrelado de certa forma ao próprio sobrenatural no qual nunca acreditou. Talvez por isso o personagem hoje tenha se tornado quase uma caricatura do que já foi.
Zé do Caixão surgiu pela primeira vez em 1963, na produção “À Meia-noite Levarei sua Alma”, na qual conhecemos o personagem e suas motivações. Diferente da maioria das histórias da época, o terror não estava em monstros de outro planeta, lobisomens ou vampiros, e sim na própria mente doentia humana e nas perversões de Zé do Caixão em sua busca incessante pela “imortalidade”. Criado, por José Mojica Marins, que também o interpreta, Zé do Caixão surgiu justamente para fazer um novo tipo de terror, um terror mais brasileiro, segundo o próprio autor.
Deu muito certo, tanto que o personagem ficou muito popular e participou de outros filmes, programas de TV e histórias em quadrinhos. Mas a principal trajetória do personagem se encontrava em dois filmes: À meia-noite levarei a sua alma e a sequência, À Meia-Noite Encarnarei no teu Cadáver. Mojica pretendia produzir um terceiro filme que fechasse a trilogia, mas nunca havia conseguido levar a idéia adiante, até recentemente onde, mais de 40 anos depois de À meia-noite encarnarei no teu cadáver, o autor finalmente consegue produzir Encarnação do Demônio para fechar em grande estilo a história do personagem. O que nos leva a HQ tema deste post.
Bem, 40 anos é um bom tempo, e muita coisa acontece em tantas décadas. É uma vida inteira, na verdade. Mojica entendeu isso, e então decidiu voltar, não só para o cinema, mas para outro meio que sempre lhe acolheu: os quadrinhos. Daí surgiu Prontuário 666 – os anos de cárcere de Zé do Caixão, que explora parte desse período de tempo em que o personagem esteve preso, entre o final de À meia-noite levarei sua alma e o começo de Encarnação do Demônio. Mojica não é nenhum estranho nos quadrinhos; além de ser um grande fã dessa mídia, teve, em sua historiografia, diversas inserções do seu personagem em HQs das mais diversas.
Prontuário 666 na verdade se passa quase todo em 1988, onde vemos Zé do Caixão encarcerado, mas aproveitando o “intervalo” em seus planos para conduzir experimentos que possam ajudá-lo em sua cruzada pela imortalidade do sangue.
A HQ merece, com folga, um lugar entre as melhores HQs já produzidas no Brasil. Muitos podem achar isso um exagero, mas explico meu ponto de vista: eu defendo que existe uma diferença entre quadrinhos feitos no Brasil e quadrinhos nacionais. Enquanto um é apenas HQs feitas por brasileiros, o outro explora a identidade nacional. E quando eu falo em “identidade nacional”, me refiro à mais do que mostrar crianças de rua ou a seca no nordeste, e sim tratar daquilo que é intrinsecamente brasileiro, seus temas primordiais, seus medos, seus anseios e suas expectativas. Prontuário consegue a façanha de criar uma “espécie” de terror, que tem aquilo que é característico do gênero, num amálgama que é tipicamente “brasileiro”, no melhor sentido do termo.
No caso de Prontuário 666, o que temos é uma história que respeita a mitologia desenvolvida por Zé do Caixão, com todos os seus maneirismos e “clichês”, mas cuja narrativa gráfica é desenvolvida de forma criativa e original, abusando do traço estilizado e da narrativa gráfica surreal. Além disso, mostra uma história tipicamente brasileira que se passa na prisão, sem se deixar levar pela tentação de mostrar o óbvio. Além disso, a hq também aproveita para fazer homenagens sutis aos filmes anteriores e traz o Zé do Caixão para os novos tempos, sem descaracterizá-lo.
Os criadores da Hq são Adriana Brunstein (texto) e Samuel Casal (texto e arte), grande artista do circuito. Este último é o responsável pela arte estilizada e perfeitamente adequada para um personagem como este, utilizando-se apenas de técnicas de claro/escuro e uma narrativa sequencial extremamente competente que brinca com as expectativas do leitor.
Uma hq que não tinha muitas pretensões a não ser preencher a lacuna entre o segundo e terceiro filmes do Zé do Caixão, acabou sendo uma história que traz um novo fôlego aos quadrinhos brasileiros e ainda revitaliza o gênero nas hqs, tornando-se um verdadeiro exemplo de quadrinho nacional. E que definitivamente vale ter na estante.
Edições anteriores:
23 – Da TV para os quadrinhos: Arquivo X
22 – Criadores de Terror: Eugenio Colonnese
21 – Terror nas grandes editoras, parte final
20 – Terror nas grandes editoras, parte 2
19 – Uzumaki
18 – Terror nas grandes editoras, parte 1
17 – Do cinema para os quadrinhos: Evil Dead/Army of Darkness
16 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte final
15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto
14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1
13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas
12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura
11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz
10 – EC Comics, parte 3: o fim
9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga
8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)
7 – EC Comics, parte 2: o auge
6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional
5 – EC Comics, parte 1: o início
4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo
3 – A Era de Ouro dos comics de terror
2 – Beladona
1 – As histórias em quadrinhos de terror: os primórdios