A Marvel Comics é uma editora que, mais do que um “pé” no terror, tem o corpo inteiro, tendo sido fundado basicamente sobre uma editora de terror, como já mencionei em um texto anterior. Mas é claro que uns personagens estão mais para lá do que os outros e podemos considerar Doutor Estranho um deles. Como o mais recente personagem da Marvel a ter um filme solo, nada melhor do que conhecermos um pouco da sua trajetória nos quadrinhos.
Apesar das raízes no terror, a Marvel Comics teve como referência para seus primeiros personagens a ficção científica. Mesmo super-heróis como Thor era abordado (mesmo que não explicitamente) mais como uma espécie superavançada do que uma divindade propriamente dita. Doutor Estranho foi o primeiro personagem a explorar explicitamente o sobrenatural. Por “sobrenatural” entenda conceitos que possuem explicação vaga ou nenhuma explicação da lógica interna do seu funcionamento e onde o mistério do conceito desempenha papel maior do que sua explicação.
Doutor Estranho foi criado em 1963 para a revista Strange Tales por Stan Lee e Steve Ditko. Ditko, que não era nem um pouco estranho ao terror (um ano depois estaria ilustrando as páginas de Creepy para a Warren Publishing) e foi ele quem levou a ideia do personagem para Lee e, na edição 110 da revista, o personagem estreou.
A origem do Doutor Estranho se manteve relativamente inalterada ao longo dos anos: Stephen Strange, um cirurgião brilhante, porém arrogante, pensava mais no quanto poderia ganhar de fama e dinheiro com suas habilidades do que ajudar as pessoas. Até o dia em que um acidente destrói o instrumento sem o qual ele não poderia mais realizar cirurgias (suas mãos). Depois de gastar todo o seu dinheiro tentando recuperar suas mãos, sem sucesso, em um último recurso acabou indo parar nas montanhas do Himalaia, onde encontra o Ancião, um mestre oriental muito antigo, que o inicia nas artes místicas, dando novo rumo à sua vida. Logo na primeira história já somos apresentados ao ancião e, em sua origem, poucas edições adiante, somos apresentados também ao Barão Mordo, que se tornaria um de seus inimigos mais mortais.
1963 – 1969
As primeiras aventuras do Doutor Estranho fugiam completamente do que se poderia esperar de histórias sobrenaturais, ao menos visualmente. Ao invés de colocar Doutor Estranho contra criminosos comuns ou supervilões, Lee e Ditko colocavam o personagem desbravando outras dimensões, encarando monstros bizarros e encontrando criaturas que representavam os mais abstratos conceitos (como Pesadelo ou Eternidade, personagens que existem até hoje no Universo Marvel). Os painéis eram coloridos e psicodélicos e os desenhos eram bastante inovadores para a época, incorporando – e até antecipando – o contexto que os anos 60 viveria nos EUA.
A “era de ouro” do personagem com a revista Strange Tales encerrou-se na edição 168, quando o título, que não mais figuraria outros personagens, passou a se chamar adequadamente “Doutor Estranho”. Neste período, além de Ditko, Bill Everett (criador do Namor), Marie Severin e Dan Adkins também desenharam esta fase. A primeira versão da revista do Doutor Estranho durou 15 edições, seguindo a numeração original da Strange Tales, passando a ser escrita por Roy Thomas e desenhada por Gene Colan e – mais para o fim – o arte-finalista Tom Palmer.
1971 – 1987
Após o encerramento de sua revista, Doutor Estranho apareceu na revista quadrimestral Marvel Feature, onde ajuda a fundar os Defensores. Após isso, vai parar em Marvel Premiere (revista já mencionada em outros artigos, que protagonizavam personagens como laboratório da editora para ver a possibilidade de criar novos títulos), ficando na revista por 12 edições, até ter novamente lançada uma revista solo. Foi nesta passagem pela Marvel Premiere, escrita por Steve Englehart e desenhada por Frank Brunner, que surgiu o personagem Shuma-Gorath. É nesta fase também que Doutor Estranho, Após ser obrigado a “desligar” o cérebro do Ancião (consequentemente provocando sua morte), se torna o novo Mago Supremo.
Depois da edição 14 de Marvel Premiere, um novo título do personagem passou a ser publicado. Doctor Strange: Master of Mystic Arts (também conhecido como Doctor Strange vol. 2) durou 81 edições, também escritas por Englehart. Nesta fase, o personagem teve crossover com A Tumba de Drácula e terminou com o Sanctum Santorum gravemente destruído durante uma batalha, fazendo com que a maior parte dos artefatos de Estranho tenham expirado ou sido destruídos, deixando o personagem muito mais fraco. A essa fase, seguiu-se uma curta passagem pela revista Strange Tales novamente (o segundo volume da revista), onde dividia espaço com Manto e Adaga. Estas histórias, que duraram 19 edições, mostram Estranho tentando recuperar seu poder e ressuscitar os Defensores, que haviam sido mortos na última edição do seu título próprio.
Foi durante este período que o filme para TV do Doutor Estranho (Dr. Strange, 1978) foi lançado. A produção da CBS servia como piloto para uma futura série do personagem, junto com outras séries da Marvel que a emissora já tinha, Homem Aranha e Hulk. Mas a série do Doutor Estranho nunca viu a luz do dia. Quase 10 anos depois, uma das Graphic Novels mais clássicas com o personagem seria publicada: Shamballa (1987).
1988 – 1995
Logo Doutor Estranho retornou para um título próprio, Doctor Strange: Sorcerer Supreme, que durou 90 edições, inicialmente produzido por Peter B. Gillis (roteiro), Richard Case e Randy Emberlin (arte). Apesar do título da revista, Doutor Estranho acabou perdendo o “cargo” de mago Supremo quando se recusou a lutar numa guerra por Vishanti. Assim, Estranho encontrou novas fontes de poder na forma de Magia do Caos, formaria os “Defensores Secretos” com um grupo rotativo de personagens e reuniria os Defensores originais, recuperando seu status de Mago Supremo na edição 80 da revista. Triunfo e Tormento, clássica Graphic Novel com Estranho e Doutor Destino, foi publicada neste período (1989)
1999 – hoje
Depois do fim da sua terceira revista solo, suas aventuras retornaram em diversas minisséries, como Doctor Strange: The Flight of Bones, Witches, Strange (que atualizou a origem do personagem) e Doctor Strange: The Oath.
Durante a década de 2000, mesmo sem revista própria, Doutor Estranho continuou tendo importância no Universo Marvel, aparecendo nos mais diversos títulos e tornando-se parte do grupo secreto Iluminatti. Em Guerra Civil, o personagem se colocou fora do conflito, mas, após estes eventos, decidiu ser mais pró-ativo e passou a fazer parte da equipe de Vingadores liderada por Luke Cage. Durante este período, diversos eventos fizeram-no começar a duvidar de suas habilidades, até que decide renunciar ao cargo, que passa a ser do personagem Irmão Vodu (agora Doutor Vodu).
Mais recentemente, Doutor Estranho acabou recuperando seu status de Mago Supremo após a morte do Doutor Vodu e atualmente figura em sua quarta revista solo, intitulada apenas Doctor Strange, por Jason Aaron e Chris Bachalo.
Doutor Estranho se tornou, ao longo de mais de 50 anos, um dos personagens mais importantes do Universo Marvel e, em 2016, fez sua primeira transição para a tela grande. O filme, que pega inspiração em diversas fases do personagem, é baseado principalmente nas primeiras histórias desenhadas por Steve Ditko e na minissérie “O Juramento” (The Oath). Abrindo caminho para o sobrenatural, Doutor Estranho promete ser, assim como é nos quadrinhos, um dos personagens mais importantes do Universo Cinematográfico da Marvel no futuro próximo.
Curiosidades:
– O nome “Dr. Estranho” surgiu por conta da revista que o publicou originalmente (Strange Tales). “Doutor” ficou no lugar de “Senhor” (Mr.) porque a editora já tinha o Senhor Fantástico;
– Para escrever os argumentos de Doutor Estranho, Stan Lee se baseou nas histórias de Chandu the Magician, um programa de rádio dos anos 30 sobre o americano Frank Chandler, que aprendeu as artes místicas com habilidades como projeção astral e, sob alcunha de Chandu, combatia o crime;
– Como era até relativamente comum em quadrinhos mais antigos, Doutor Estranho só teve sua origem detalhada algumas edições depois da sua estreia;
– No início, Doutor Estranho era chamado de “Master of Black Magic” (Mestre da Magia Negra) e não “Mestre das Artes Místicas”;
– Pesadelo foi o vilão da edição de estreia de Doutor Estranho;
– Segundo o historiador de quadrinhos Bradford W. Wright, as hqs do Doutor Estranho anteciparam a contracultura americana dos anos 60, que se tornaria fascinada por psicodelia e misticismo oriental;
– Durante a fase de Engleharrt e Brunner na Marvel Premiere, foi publicada uma história onde Doutor Estranho e o Mago Sise-Neg viajam pelo tempo coletando artefatos místicos. A batalha entre os dois acaba sendo responsável por incidentes do passado remoto como Sodoma e Gomorra. Os dois chegam até a origem do universo, onde Sise-Neg, agora um deus, acaba se tornando responsável pela criação do universo como conhecemos. Ao ler esta história, Stan Lee solicitou aos autores que publicassem uma retratação dizendo que o vilão era “um” deus e não “o” deus, para não ofender religiosos. Mas, ao invés disso, os autores fizeram uma carta de mentira, citando um pastor fictício que teria adorado a história, e enviaram para a Marvel. A editora acabou publicando a carta e deixando a retratação de lado;
– Uma revista com Doutor Estranho e o Homem de Gelo (em histórias solo) chegou a ser anunciada oficialmente, mas nunca ganhou a luz do dia;
– Strange Tales também figurava personagens como o Tocha Humana (a versão Johnny Storm em aventuras solo) e Nick Fury.
Edições anteriores:
30 – Plantão Sarjeta do Terror – Sombras do Recife
29 – Criadores de Terror: Rodolfo Zalla
28 – Da TV para os quadrinhos: Além da imaginação
27 – Vigor Mortis Comics – Volume 1
26 – Super-heróis com um “pé” no terror: O Espectro
25 – Warren Publishing: Contornando o Comics Code
24 – Prontuário 666, os anos de Cárcere de Zé do Caixão
23 – Da TV para os quadrinhos: Arquivo X
22 – Criadores de Terror: Eugenio Colonnese
21 – Terror nas grandes editoras, parte final
20 – Terror nas grandes editoras, parte 2
18 – Terror nas grandes editoras, parte 1
17 – Do cinema para os quadrinhos: Evil Dead/Army of Darkness
16 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte final
15 – Super-heróis com um “pé” no terror: Doutor Oculto
14 – Terror no mundo real: o Comics Code Authority, parte 1
13 – Da TV para os quadrinhos: Elvira, a Rainha das Trevas
12 – EC Comics , epílogo: O Discurso Contra a Censura
11 – Criadores de Terror: Salvador Sanz
10 – EC Comics, parte 3: o fim
9 – Super-heróis com um “pé” no terror: Homem Formiga
8 – Interlúdio: Shut-in (trancado por dentro)
7 – EC Comics, parte 2: o auge
6 – Interlúdio: Garra Cinzenta, horror pulp nacional
5 – EC Comics, parte 1: o início
4 – Asilo Arkham: uma séria casa num sério mundo